Entre os aspectos críticos estão a falta de garantia da universalização do serviço e o
compartilhamento de risco desigual entre poder público e setor privado.
Estudo do Centro de Estudos da Favela (CEFAVELA-Cepid/Fapesp) sobre o desenho da concessão dos serviços de saneamento do Estado do Rio de Janeiro aponta que o setor privado não dá garantias dos recursos necessários para o cumprimento das metas de universalização, fator crítico para as populações que moram nas favelas e em áreas precárias. O arranjo institucional adotado é também marcado pela necessidade de aportes públicos estruturais, oferecendo margem de segurança financeira e capacidade de extração de renda a favor das empresas.
Ao mesmo tempo, a modelagem da Parcerias Público Privada (PPP) garantiu aos governos municipais e estadual a antecipação da outorga paga pelas concessionárias. Entretanto, estas receitas geradas pela concessão não foram aplicadas integralmente na área de saneamento, sendo usadas em outras despesas administrativas, e não há garantias de que as tarifas não serão reajustadas, mesmo havendo essa previsão na PPP.
Esses e outros resultados do estudo feito por Marcos Thimoteo Dominguez e Jeroen Johannes Klink, pesquisador e diretor do CEFAVELA, respectivamente, estão detalhados no artigo “Os Dilemas do Planejamento Urbano-Metropolitano em Tempos de Austeridade e Financeirização: O Caso da Concessão Privada do Saneamento no Estado do Rio de Janeiro – Brasil”, publicado pela Revista Eletrónica de Geografía y Ciencias Sociales Scripta Nova da Universidade de Barcelona.
“Há um compartilhamento desigual de riscos entre o setor público e o setor privado nas PPP, especialmente no contexto da presença significativa de favelas e outras formas de assentamentos precários no estado”, apontam os pesquisadores sobre o processo de concessão dos serviços de saneamento ocorrido entre 2020 e 2021 no Estado. “Na questão específica das favelas, o desenho da PPP oferece um ambiente de baixo risco às concessionárias, uma vez que esses territórios – que demandam intervenções complexas e de alto custo – não estão indicados objetivamente no edital e são tratados por meio de uma ação regulatória genérica e omissa”, prosseguem.
Um primeiro complicador está no emprego do termo vago “áreas irregulares” para se referir a favelas e assentamentos precários, que representam um universo socioespacial altamente heterogêneo, o que o edital do leilão ignorou por completo. Dentro dos investimentos previstos de R$ 31 bilhões ao longo dos anos, a PPP alocou R$ 1,86 bilhão para intervenções nessas áreas, sem nenhuma especificação mais detalhada de como será realizado esse investimento.
Além disso, a estratégia vincula a atuação das concessionárias nessas localidades a um conjunto de condições prévias que devem ser asseguradas pelo próprio governo estadual. A empresa concessionária não tem obrigatoriedade de investir em aperfeiçoamento do sistema nessas áreas, caso não estejam asseguradas condições básicas de regularização fundiária, vias asfaltadas, sistemas de drenagem e presença de segurança pública.
Outro ponto crítico está na base de informações utilizada nas estimativas e previsões de recursos. O edital fez referência apenas ao cadastro de favelas da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, formalizado pelo Sistema de Assentamentos de Baixa Renda (Sabren). “Isso significa que favelas localizadas em outros municípios não foram consideradas nas estimativas contratuais”, alertam os cientistas. O cenário é bem mais complexo do que a base de informações usada indica. O Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que o estado do Rio de Janeiro abrigava 1.724 favelas, totalizando 2.142.466 moradores – o equivalente a 13,5% da população estadual. Somente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) há 1.251 assentamentos desse tipo.
A PPP promete, ainda, que não haverá aumento real das tarifas ao longo do período de concessão. “No entanto, uma análise mais detalhada revela o dispositivo utilizado para viabilizar tal promessa. Especificamente, a Cedae torna-se alvo de uma estratégia de margin squeeze, segundo a qual a empresa gradativamente perde fluxo de caixa e ativos durante a concessão”, afirmam. Para completar,dado o monopólio na venda de água no atacado, as cláusulas contratuais preveem que aumentos inesperados nos preços cobrados pela Cedae podem ser repassados pelas concessionárias aos consumidores finais.
Para além da questão da universalização do serviço, há, também, um risco concreto de que os recursos em “dinheiro vivo”, gerados pela concessão no presente, sejam apropriados por outros setores da administração pública. “Ao analisar a aplicação governamental dos recursos econômicos provenientes do leilão, apenas 33% do montante recebido pelo governo estadual, entre 2021 e abril de 2023, foi destinado a despesas com investimentos em infraestrutura. O restante foi alocado para a manutenção dos gastos correntes da administração, incluindo o pagamento da folha salarial do funcionalismo e de fornecedores”, revelam.
A PPP sequer previu um dispositivo financeiro específico para ressarcir a companhia estadual pelos investimentos não amortizados nas redes de distribuição e equipamentos que passarão a ser utilizados pelas concessionárias privadas. Segundo informações fornecidas pelos consultores que auxiliaram na elaboração do modelo de concessão, caberia ao próprio governo estadual ressarcir a companhia como forma de mitigar eventuais perdas relativas a investimentos anteriores não amortizados. O cenário, assim, é de risco extremamente baixo para o setor privado.

Impactos do modelo no planejamento e execução de políticas públicas
Pelo estudo do caso da concessão dos serviços de saneamento no estado do Rio de Janeiro, os pesquisadores do CEFAVELA fazem uma análise dos efeitos da financeirização urbana e da austeridade fiscal sobre o planejamento urbano-metropolitano que valem como alerta em relação a um processo de privatização de serviços de água e esgoto que está sendo aplicado em outros estados, como recentemente ocorreu em São Paulo.
Em razão da austeridade fiscal que vem sendo imposta aos entes federativos, os gestores e planejadores públicos têm priorizado a colaboração com agentes privados, o que envolve a adoção de uma comunicação e linguagem vinda de modelos financeiros. Desta forma, parâmetros que seriam relacionados com a rentabilidade corporativa gradativamente penetrem nas dimensões mais tradicionais do campo do planejamento e execução das políticas públicas.
Com isso, ganham nova centralidade as propostas de políticas pautadas em uma gestão técnica e de mercado, ao invés das demandas e realidades das populações. “No Brasil, a atuação de bancos e fundos de investimentos internacionais no processo de financeirização urbana, por meio da ampliação de sua carteira de projetos, vem condicionando os modelos de concessão dos serviços urbanos, interferindo diretamente no planejamento de cidades e regiões”, afirmam.
No caso do estado do Rio de Janeiro, observa-se uma colaboração que favorece um arranjo multiescalar, envolvendo governos locais, estaduais e federais, concessionárias privadas, fundos de investimento nacionais e internacionais, bancos privados e o próprio Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Esta aliança público-privada busca soluções “criativas” para a escassez de recursos em tempos de austeridade, procurando antecipar receitas futuras vinculadas a infraestruturas públicas, de modo a gerar liquidez imediata para os gestores públicos e, assim, enfrentar os déficits sociais concretos do presente.
Não há informações detalhadas sobre a lucratividade privada desta PPP, mas as projeções feitas pelos pesquisadores do CEFAVELA indicam taxas generosas para as operadoras e investidores, com um máximo de 69% para o bloco 2 e um mínimo de 25,72% para o bloco 3, considerando uma taxa de juros real de aproximadamente 3,45% para os médio e longo prazos.
Os quatro blocos geraram um ágio superior a 142%, ao se comparar o valor mínimo da outorga – R$ 10,3 bilhões – com a receita efetivamente obtida nos leilões, de R$ 24,9 bilhões. Além dos investimentos previstos de R$ 31 bilhões ao longo dos anos, a outorga injetou, aparentemente, “dinheiro vivo” no orçamento do Estado e dos municípios da RMRJ.
Já os balanços financeiros da Cedae referentes aos anos seguintes à concessão registram uma queda expressiva nas receitas operacionais da companhia. Em 2020, ano em que os leilões foram realizados, a empresa obteve uma receita operacional de R$6 bilhões. Apenas dois anos após o início da concessão, esse valor foi reduzido pela metade, atingindo R$ 2,8 bilhões.
Participação social relegada
Outro aspecto prejudicado no modelo da PPP adotado pelo Rio de Janeiro para a privatização do saneamento é o da participação social. O que está estabelecido pela modelagem é a instituição de um Conselho do Sistema de Fornecimento de Água (CSFA), composto pelas concessionárias, pela Cedae, pela Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Rio de Janeiro (Agenersa) e pelo Instituto Rio Metrópole (IRM), sem a presença de qualquer instrumento de controle social. No caso do IRM, sua atuação é limitada à contratação de serviços de consultoria para a elaboração de planos relacionados às funções públicas de interesse metropolitano, entre elas, o saneamento. “Essa estrutura político-administrativa de gestão do saneamento, ao não reconhecer outras esferas de conflito social, enfrentará sérias dificuldades para mediar divergências e disputas relacionadas à gestão dos serviços”, preveem os pesquisadores. Acesse aqui o artigo na íntegra.
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Sobre o CEFAVELA
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